
Vila Franca viveu uma noite histórica de grande significado na “sua” Corrida de Toiros mais emblemática de cada temporada taurina. Perante um cartel que ultrapassava fronteiras no panorama do toureio equestre mundial e uma lotação esgotada a carregar ainda mais no “peso” criado pela exigência caraterística do público da centenária Palha Blanco, uma Praça sempre tão diferente de todas as outras, perfilou-se um Grupo de Forcados a atuar em solitário e presente por direito próprio numa noite onde gravou as derradeiras linhas duma página e iniciou o esculpir de uma nova para o seu glorioso historial.


Nesta corrida de compromisso, o ponto alto foi inegavelmente a transição de Cabo do Grupo de Forcados Amadores de Vila Franca de Xira de Ricardo Castelo para o 18º Cabo do seu historial, Vasco Pereira, encerrando-se um ciclo de 9 temporadas em que os mais altos valores desta grande instituição foram sempre acerrimamente defendidos pelo Ricardo Castelo.

Como Cabo, não se acomodou a um Grupo com abundante qualidade de elementos, pelo contrário, criou condições para presentemente poder sair com a “mesa posta” deixando trabalho feito e a consciência tranquila de quem soube manter essa qualidade reinventando-a quando necessário e sempre com a visão focada num passo à frente. Intransigente na defesa dos valores fundamentais do Grupo e dos elementos que o compõem, debateu-se nos últimos anos contra o cinzentismo da maioria da atual visão empresarial taurina que se aproveita da leviandade com que alguns grupos encaram o seu papel na festa e à custa de uma redução substancial no numero de atuações, manteve o seu Grupo distante do baixo nível ético, moral e bastas vezes exibicional predominante em vários Grupos da zona “puntera”. Marcou vincadamente a posição do seu Grupo, essa posição está bem definida e não vai certamente recuar com o Vasco Pereira que é feito da mesma “cepa”. A qualidade dos desafios não se ressentiu, o Grupo nunca deixou de marcar presença em datas e Praças importantes, mas a tarefa de dar oportunidades e rodagem a jovens forcados a emergir no seio do Grupo ficou de certo modo condicionada.

Como forcado no ativo fez parte desde cedo na sua carreira da primeira linha, não só do Grupo onde nasceu e cresceu mas de uma geração inteira de forcados Portugueses e mesmo no papel de Cabo, nunca se refugiou na eventual comodidade desse estatuto, muito mais num Grupo recheado de grandes forcados, dando sempre o exemplo do que era ser um grande forcado a assumir várias vezes os desafios mais complicados do Grupo onde, por acaso até era Cabo. Foram 20 temporadas com algumas mazelas pelo caminho que nunca tiveram força suficiente para o demover, do qual os aficionados deste país puderam desfrutar da qualidade e do saber estar em praça de um Forcado na verdadeira aceção da palavra e, como apreciador da pega, resta-me agradecer ao Ricardo pelos momentos que disfrutei a vê-lo pegar de modo tão brilhante quanto verdadeiro.

Sucede-lhe como novo Cabo do Grupo de Vila Franca o Vasco Pereira, um forcado cuja juventude não lhe tira uma já grande maturidade nos bons modos como sabe pisar a arena, na técnica e valentia com que enfrenta os toiros e no modo como encara a vivência no seio do Grupo que lhe deu um dos maiores votos de confiança que se pode dar a um elemento de cada Grupo, elegendo-o para Cabo. Com a determinação que se lhe reconhece, com as linhas mestras de ensinamentos absorvidos do inesquecível “Mané”, com a ajuda de todos os que sentem o Grupo de Vila Franca, sejam forcados, Ex forcados, acompanhantes ou apenas admiradores e com a sorte que sempre protege os audazes, o Vasco Pereira vai certamente levar o barco a bom porto mantendo os valores fundamentais baseados na verdade e na dignidade que caraterizam desde sempre o Grupo de Vila Franca.

As pegas da corrida




O Ricardo Castelo escolheu o cumpridor Prudêncio de 535 Kg que abriu praça. Foi perfeito na cara do toiro, mandou, recebeu num temple a trazer uma investida bem consentida a dobrar-se, as regras foram perfeitamente interpretadas e transmitiu emoção no modo como se acomodou lá no alto após uma entrada forte do oponente, na reunião. Atrás de si, existia história, realidade e futuro do Grupo nas eficazes ajudas, de modo imponente, foi uma grande pega de um grande forcado, com um grande Grupo.


O Vasco Pereira “fez” oficialmente o Grupo para a pega seguinte, já como Cabo do Grupo. 525 Kg de Prudêncio sério e pouco dado a ser “apertado”, com investidas bruscas e uma busca constante de saídas, mas apesar de tudo a empregar-se após o castigo. Escolheu-se para ser o forcado da cara. Após sentido brinde num momento especial a pessoas especiais, lutou com o Prudêncio durante 4 tentativas em que teve sempre de suportar as abruptas e velozes investidas do toiro, a entrar por baixo, culminada numa grande pega plena de raça e com uma muito solidária ajuda do seu irmão José Francisco que dava primeiras e esteve enorme após o toiro fugir ao Grupo.


Para pegar o primeiro Palha da noite com 520 Kg que saiu algo reservado, foi eleito o Francisco Faria que esteve soberbo e poderoso desde o modo como esteve na frente do toiro, como mandou, como se sacou obrigando o toiro a alongar-se na procura do forcado e como se fechou enchendo a cara ao toiro que após entrar pelo Grupo dentro, teve deste uma resposta de grande competência, fechando uma pega imaculada e com uma qualidade superior em todos os aspetos.


O segundo Palha da noite, acusou 470 Kg e teve como adversário na cara, o David Moreira “Canário”. Perante um toiro de pouca estampa que se deixou lidar sem nunca “romper”, o forcado teve de se emendar lá no alto dos dois fortes derrotes iniciais sofridos no seguimento do pouco consentimento dado antes da reunião, efetuando uma pega de força e garra, a subir pelo toiro com muita alma e com extraordinária ajuda a compor e a fechar, por parte do resto do Grupo, em mais uma grande demonstração de sítio e coesão.



O quinto da noite foi um Guiomar Cortes Moura anunciado com 530 Kg que demonstrou bons modos, franco na peleia e a dispensar refúgios em terrenos mais defensivos. Saltou para a cara o consagrado Márcio Francisco, forcado que dispensa adjetivos, sinónimo de valor e classe passeados pelas arenas ao longo de muitas temporadas no ativo. Brindou ao Cabo que o lançou no Grupo de Vila franca, Vasco Dotti, em momento de simbolismo já préviamente anunciado como um adeus às arenas, impercetível para quem desconhecia tal premonição. Foi vencido numa tentativa inicial onde o toiro não perdoou, através duma entrada com o piton esquerdo no joelho e a “voltareta” foi feia e quase cruel. Com a raça que se lhe reconhece dispensou a maca e recuperou o discernimento momentaneamente perdido para se fazer a esta ultima pega. Foi uma pega à Márcio, a mandar já em terrenos proibitivos, o Ivo Carvalho a não facilitar nas primeiras e o André Matos nas segundas a mandar naquele trabalho de poder e técnica, coadjuvado por mais uma exibição de gala dos restantes ajudas desta pega, frente a um toiro digno do Grupo que o enfrentou e da qualidade do forcado da cara que o pegou. Foi uma ultima demonstração da fibra e da categoria do Márcio Francisco como forcado no ativo, verdadeira figura da forcadagem e um dos melhores exemplos a seguir para quem um dia quiser saber como se devem pegar toiros.


A corrida mais marcante dos últimos tempos na Palha Blanco encerrou com mais um Guiomar Cortes Moura, 550 Kg de peso, cumpridor e dentro da casta que o caracteriza, pouco exuberante, mas franco nas investidas. Outro forcado de eleição, Rui Godinho, a saltar para enfrentar como forcado da cara este último oponente da noite. Brindou ao Ricardo Castelo e fez-se ao toiro. Este saiu pronto, inicialmente a chouto, mas alegrado pelo cara subiu o temperamento da investida que culminou numa reunião eficaz por parte do Rui e do resto do Grupo que mais uma vez esteve extremamente eficaz e com as peças a funcionar nos sítios certos.

Foi assim que decorreu esta noite verdadeiramente histórica na Palha Blanco com um grande Grupo numa atuação muito equilibrada a dignificar o seu Historial, a Tauromaquia, uma Praça esgotada que alberga um cunho único de exigência e um Cartel composto por grandes Figuras do Toureio que cumpriram com as expetativas. Foi bom voltar a ver na teia e na arena a “dar o litro”, com a mesma vontade, qualidade e espírito de Grupo, grandes figuras já retiradas do ativo que viveram com o Ricardo muitas tardes e noites de glória e que não se dissociaram de o homenagear, acompanhando-o naqueles momentos tão simbólicos e, de igual modo, apadrinhando a nova função de responsabilidade e compromisso que o Vasco Pereira tem por diante.

Paulo Paulino “Bacalhau”