Sei que arriscarei melindres e mesmo, talvez, algumas reacções dentro da comunidade da forcadagem e até fora, no espaço mais alargado do ambiente toureiro, uns a quem não convém o que direi aqui, se souber dizer, outros porque, em erro, se pensem pessoalmente referidos, outros no preconceito que exclui a pega de caras da ideia de toureio como arte, outros porque nem sequer sabem do que irei falar.
Então, se antevejo tão alargada e negativa recepção, pergunto a mim próprio, antes de continuar, porque carga de água o farei?
Algumas resposta poderia dar a mim próprio, autor do crime e sua vítima previsível, mas escolherei apenas a que me parece mais cómoda e virtuosa, sem dúvida, a aficion e o gosto pela Festa em geral, pela pega em particular e a esperança da sua perenidade na lista das actividades humanas, na expressão da mais alta qualidade que lhe foi construída em dezenas de anos de grandes Grupos e de grandes forcados.
E há que dizer que estou preocupado, coisa que não estaria se não se vislumbrasse por aí uma crise de valores, naturalmente e em primeiro lugar, nos grupos tradicionais e em muitos dos novos que vão aparecendo, denúncia logo por si, de um modismo que como todos os modismos acabará por ser mais prejudicial do que benéfico, e em segundo lugar, de forcadagem tida individualmente.
Na verdade, pelas corridas a que tenho assistido, umas nas praças e outras na televisão, qualquer coisa vai mal no reino da Dinamarca, quando se vêm jovens cheios de genica e de vontade de pegar e brilhar, cumprirem bem os tempos e os espaços da pega e, no momento supremo da reunião, deitarem tudo a perder, mandando pouco, recuando escassamente ou demais, sem mando nem carrego, fechando-se à córnea como podem e os toiros deixam, aguentando derrotes que os vencem em cima ou junto ao chão.
A meu ver, isto acontece porque o forcado está, vezes demais, apenas munido da sua coragem, de força, de capacidade de sacrifício e daquela suficiente dose de loucura que lhe faz trilhar o caminho escolhido, mas está em falta com o fundamental que é a “arte de tourear”, subtilmente dividida entre o sub-consciente e o consciente; entre essa intuitiva capacidade de criar e de comunicar o que cria através da emoção, e o domínio intelectual que lhe permite escolher tempo e espaço para determinar o modo.
Para evitar confusões, digo já que sou absolutamente contra as bocas de alguns antigos forcados, “já não há forcados como antigamente”, “no meu tempo era outra coisa”, e quejandos, denunciadores apenas de saudades e de regressos impossíveis para além dos sonhos.
Indo mais directo ao assunto, direi que creio profundamente que tourear é uma arte, não no sentido restrito dessa palavra, arte, que se usa banalizada “o artista…isto, o artista …aquilo” ou “o grande artista Quim Barreiros” quando o próprio, de si diz que como artista é…bom rapaz, mas no conceito e na definição de arte maior, expressão rara e individualizada em alguns seres que são capazes de compreender, assumir e realizar o que muitos outros (milhões de) cidadãos gostariam de fazer, e disso construir forma de comunicação com largas “plateias”
em momentos especiais de prazer e partilha.
E querendo ser mais rigoroso, emendarei o que disse agora mesmo, afirmando que tourear pode ser uma forma de arte e o é algumas vezes e em momentos gloriosos, não o sendo a maior parte das vezes em que poderia ser, por culpa dos ingredientes e dos condicionalismos envolvidos, por culpa também dos momentos de inspiração do “artista”
na leitura da realidade circundante e do desencontro consequente.
Creio que não há que alimentar preconceitos à volta desta realidade, como o não há quando os “romances” ou os poemas que lemos, as esculturas e as pinturas que vemos, a música que ouvimos, não conseguem levar-nos a esse “estado de graça” que nos faz pensar “era assim que eu gostava de escrever, de pintar, de tocar, de tourear”.
Raramente se sai de um praça de toiros com vontade de gritar “que grande corrida”, e nem por isso deixamos de voltar às praças sempre que as disponibilidades no-lo permitem, sempre na esperança de ver coisa grande, como não desgostamos a literatura e os grandes escritores mesmo quando eles escrevem coisas “mazinhas” apenas porque têm de pôr pão todos os dias na mesa.
E a pega de caras?
Quanto a mim, a pega de caras tem de estar no mesmo patamar das actividades acima referidas e na definição escassa que delas faço.
Quer dizer. A pega de caras é uma das vertentes do toureio e, como tal, pode algumas vezes ser arte plena.
Acho mesmo que nem valeria a pena a existência da forcadagem apenas com base na expressão de uma rapaziada valente, rija, vaidosa, um pouco louca, geniquenta e de muita força. Todos estes ingredientes são indispensáveis, sem dúvida, mas apenas se colocados ao serviço da consciência, do saber aperfeiçoado e da intuição.
Pegar um toiro, exige que o forcado tenha feito uma boa leitura das suas características individuais postas em praça e que dessa leitura ponha em prática uma boa escolha do espaço e do tempo para definir o modo como recebe o toiro, não, onde, quando e como e o toiro quer, mas como o forcado manda.
Ora, é aqui que tenho visto em grande número de corridas esse grande equívoco de que pegar é agarrar o toiro até que este se deixe vencer, simulando-se, aí, a sua morte.
Vejo forcados cheios de vontade, de valentia, de capacidade de sofrimento, mas muito mal nesse lapso de tempo que é a reunião. Chama bem, cita, templa, mas…
E parece-me que é aqui que estará a explicação de tanto forcado se fechar na córnea, muitas vezes com belos braços para uma barbelada, mas dependurando-se apenas, aguentando, ou porque o toiro não derrota, ou, derrotando, à custa de muita força e genica, até que o grupo feche.
Pensarão alguns que não há mal nenhum pegar à córnea, que grande forcados sempre pegaram à córnea, e tal.
Não direi que não, pensando sobretudo em alguns “rodas baixas” e outros que não o sendo apanharam o jeito para “subirem” no primeiro derrote e se colarem em equilíbrio perfeito sobre a cabeça do toiro.
Não gosto de ver essas pegas quase recurso por uma cabeça alta ou descomposta, em que o forcado fica dependurado e a arrastar pelo chão até à derrota ou até que o grupo lhe acuda.
A glória maior de uma pega, para mim e admitindo que o não seja para outros, é o toureio que o forcado faz, carregando ou aliviando, obrigando o toiro a humilhar e a marrar pelo centro de gravidade do corpo do forcado, isto é, mais ou menos na meia altura da cinta vermelha.
E se a questão é principalmente de beleza estética e prova da arte do forcado, tem também muitas outras vantagens nos segundos consequentes, com o corpo do forcado distribuído pela metade em relação ao ponto/força do derrote, uma parte colada no morrilho do amigo e a outra metade abaixo, tentando fechar-se de pernas.
Numa córnea de recurso, a força do impacto dá-se muito fora do centro de gravidade do corpo do forcado e este tem de suportar a braço, a força do derrote e todo o peso do seu próprio corpo.
Depois, a possibilidade de fechar na córnea como recurso de uma saída da barbela em resultado da força do toiro, é mais uma garantia de uns metros até que o grupo se fecha. Também tem peso e importância na consumação airosa da pega, o facto de os ajudas estarem sempre mais preparados para carregar do que para levantar a cabeça do toiro ou pelo menos o corpo do cara que vem a arrastar por entre as mãos do animal.
Por último, embora houvesse aqui pano para mangas, muitas córneas que vejo por aí, antecedidas de muita fadistagem na chamada e no cite, parecem-se muito com uma pressa demasiada para se agarrar e despachar aquilo, coisa lamentável quando o que toda a gente está à espera é da emoção da coisa perfeita.
Creio que os Cabos e a forcadagem antiga que acompanha os grupos bem precisam de debater tudo isto com os jovens aspirantes a forcados, complementando-lhes a valentia e a genica com o saber e, principalmente, com o sentir o toiro e a pega, coisa que também se “aprende” fazendo e emendando, como qualquer grande pianista que para retirar do piano uma nota na sua intensidade e brilho plenos, tem que a ensaiar milhares de vezes.
De facto, uma pega pode ser um acto artístico pleno quando se enfrenta um toiro de peso e idade e se o submete à vontade do “pegador” e dos milhares de aficionados em suspenso e desejando isso mesmo e partilhando da emoção que o forcado lhe comunicou.
José Brás