Este foi um dos títulos escolhidos pelo Instituto Cervantes para a primeira das duas “Mesas Redondas” de uma iniciativa sua de debate sobre a tauromaquia, sendo o da segunda OS TOIROS HOJE, que a meu ver, não apenas por ser segunda, é apenas um prolongamento encadeado da primeira, já que pouco sentido faria falar de toiros e de toureio, sem ter por base a ideia chave da arte como justificação e epílogo.
Da oportunidade desta iniciativa e de tais títulos, cresceu-me uma certa vontade de pensar na coisa, sendo que para mim, a melhor forma de pensar é escrevendo, sobretudo quando na ausência de parceiros com quem discuta de palavra à mesma, mas dita e não escrita. Vou falando por dentro, as mãos tentam acompanhar no teclado do computador essa fala solitária, retornando ao escrito, emendando, melhorando, e no fim se vê quem tem razão.
Quer dizer, se a mancha das palavras tem algum préstimo para mais alguém por fora de quem as fixou no monitor.
Vejamos!
Se na sua origem, a palavra arte, significava apenas técnica, uma técnica, ou mesmo apenas uma habilidade, quer dizer, o saber fazer por soma de aprendizagem curta ou longa ou por aptidão nata em alguns indivíduos para exercerem determinada atividade. Provavelmente, por demonstração de habilidade extrema em alguns cidadãos, o que faziam acabava por tornar-se motivo de observação e de emoções nos outros, e objeto de discussão e estudo, construindo-se à sua volta uma teoria da relação da obra com a realidade representada e a própria consciência de estética.
Daí que tanta gente continue a afirmar que não há arte fora da relação com a realidade, mas apenas diferenças de olhar e da sua projeção em códigos, registos, ritmos, cores, volumes, etc., consoante o caminho que cada artista percorreu, crescendo, e que escolhe, seja literatura nas suas várias vertentes, seja música, pintura, escultura, teatro, dança?
E é no grau de sensibilidade e de capacidade de leitura do mundo e da sua interpretação, que achamos grandes artistas, ou apenas artistas, não deitando fora em todas as áreas da criação, os próprios artesãos e o artesanato.
Não refiro o título genérico dado a esta iniciativa do Instituto Cervantes, NEM TOUROS SIM, NEM TOUROS NÃO, imagem construída, acho eu, em cores demasiado negativistas, e preferindo a essa bandeira, uma outra positiva e mais próxima do direito geral de cidadania a ter opinião, gosto e até, sem preconceitos, ideologia no sentido lato da palavra, e o próprio direito à diferença que em quase tudo racha a Sociedade, algumas vezes para mal mas quase sempre para o bem. TOIROS SIM, TOUROS NÃO, talvez que retratasse mais fielmente o sentir dos cidadãos.
Refiro apenas o título de uma das duas sessões OS TOIROS E AS ARTES, para dizer duas ou três (talvez vinte ou trinta) palavras que possam calhar bem ou calhar mal aqui e a propósito.
É fora de dúvidas que desde os tempos mais recuados da humanidade podemos encontrar nas pedras das cavernas onde habitaram seres humanos, registos gravados representando o touro. E se o touro era, em certas civilizações, motivo suficiente para a sua representação, é porque o touro despertava nos humanos subida emoção e desejo de o projetar na pedra.
Quer dizer. Chegasse pela via que chegasse essa emoção, a sagrada busca de Deus e o pagamento dos tributos de sangue devidos pela fé na salvação da alma, ou a profana caçada e, de novo, os devidos tributos de sangue pela salvação do corpo, poderemos imaginar com pequeno risco de erro que qualquer espécie de tauromaquia existia já, e dela, o homem partia para o sonho da sua perpetuação pela arte.
Evidentemente, correndo os séculos, necessidades morreram e outras novas nasceram, e também novas formas de relação com a natureza, portanto, também novas vias abertas para a projeção dessas mudanças, apurando a técnica, abordando cada gesto com maior grau de sensibilidade e emoção, de resto, como em todas as atividades humanas e suas projeções artesanais ou artísticas.
E é aqui que gostaria de chegar se para tanto tivesse talento e saber.
O toiro e a relação do homem com o toiro foi sempre campo fértil para alimentar a necessidade de busca do infinito, porque o homem feito à imagem de Deus, sempre buscou o encontro, sempre buscou o mistério da vida e da morte, através da projeção do seu quotidiano em formas subtis e emocionantes, na gravura, no desenho, na escultura, na literatura, na pintura, na música, etc..
Dito assim, concluímos, então, que a tourada sempre serviu as artes como modelo, pela emoção do risco maior, pela plasticidade dos movimentos, pela exibição extremada da coragem e pelo ato final da morte do touro ou do toureiro, ou apenas pela sua simulação teatral.
E a tourada em si própria, princípio e fim de uma missa ou da manifestação profana, fechada em espaço redondo, logo infinito também, com seus trejeitos, suas regras e códigos, sua técnica, seu saber, seus tempos e espaços próprios e apropriados?
É ou não é arte o que, representação depurada de práticas sagradas e profanas antiquíssimas, se pratica hoje nos redondéis de Espanha e da América de língua castelhana e em Portugal?
Poderia dizer agora como no título alternativo que abordei no início, ARTE SIM, ARTE NÃO, e atrever-me mesmo a dizer, mais arte não do que arte sim, esperando que ninguém se exalte antes de eu terminar.
E para evitar exaltação, entro já com outra pergunta. Que outra arte, de todas as que já referi antes, foi sempre, é sempre arte?
Melhor. Que manifestação alegadamente artística é sempre verdadeira arte maior e que artista é sempre artista em tudo o que produz à sombra dessa palavra e desse conceito não banalizado?
Será que tudo o que produziu um escritor premiado com Nobel, é arte, só porque tem um editor, uma máquina de divulgação e distribuição e a conivência dos Órgãos de Comunicação Social, tudo garantindo milhares de exemplares vendidos e muitas edições?
Creio bem que a arte, seja em que campo for, terá sempre uma maior percentagem de transpiração do que de inspiração. Contudo, quando reúne em tempos e espaços especiais, imagens do interior de seres humanos em busca de si próprios e dos deuses que o habitam; buscando o prolongamento espiritual da sua material e comezinha vida terrena em exemplares da sua unidade e multiplicidade, pode dizer-se que se atingiu o sublime.
Também a tourada, na sua forma atual de representar ritos e práticas de uma enorme antiguidade humana, raramente é arte, exceto se quisermos falar no significado mais vandalizado da palavra, que faz de cada cantor pimba um artista da rádio canção e disco (e da cassete pirata).
Na maior parte dos espetáculos tauromáquicos não se passa do estágio do artesanato. E é bom, ainda assim, mesmo que apenas pelo ambiente criado, pela emoção prévia que tal espaço e modo organiza na alma de cada participante/espectador, pela leitura do medo nos olhos dos artistas, pelo ato de vencer tal medo, pela dança dos oponentes?
Porém, de vez em quando, o espetáculo sai de si próprio, transcende-se nos tempos, nos espaços e nos modos, pelo jogo entre toiro e toureiro, pelo mergulho dos espectadores naquela emoção profunda da proximidade da morte em cada passe.
Deixem que junte aqui passagens curtas do meu último livro “Lugares de passagem”.
“Repito, Paula. Nunca estive tão perto de deus como naqueles momentos, a dez passos curtos da besta, seiscentos quilos de músculos e ossos, chifrando o ar em ameaça terrível.
Tudo à volta é circular, o coliseu é um círculo de pesado silêncio. A arena é um mundo redondo e vazio onde só existem o eu e o toiro.
O ar e os sentidos rodam em movimento centrípeto à volta daquele espaço curto entre mim e o dragão, entre o bem e o mal, nas mãos de deuses e demónios.
Praticamente interpondo meu corpo, apenas, entre o espetáculo e a morte.
É a teatralidade suprema! Represento-me a mim mesmo. Sou os três tempos do drama, protagonista, interprete e espectador.
Sou foco central de Stanilavski, teoria épica de Brecht, vivo e morto possível no minuto seguinte num palco real e trágico”
“Mas diz-me, se souberes dizer-me, dá-me um exemplo de representação teatral, de um outro espetáculo, uma outra, performance desportiva, ainda que plena, outro jogo em que o jogo sai de si próprio, ato de humano, profano e sagrado, ainda que em busca de um ideal qualquer, e se transcenda no mais fundo do que humano pode experimentar, sacralizando o gesto singular e a tragédia do coletivo”
“A câmara fotográfica no olho da fera fixa uma figura graciosa. O olho da fera fixa no desenho do corpo o desafio e na sua memória ancestral chispa o apelo do sangue. O ataque brutal, ou fere apenas o vento que ficou da sua passagem por dentro da nossa ansiedade, ou cobra o tributo pleno da vida.
De novo te afirmo, Paula, que nunca me senti tão próximo de deus ou de deuses, o que dá no mesmo”
“E gostava, não sabendo porquê, de me pôr em frente do toiro, de chamá-lo, de provocá-lo, de aguentar a investida, escolhendo os tempos e os lugares para o momento do êxtase. Estava vencida a besta. Fora de mim e dentro de mim, suponho hoje, e também dentro de toda aquela gente que, de respiração suspensa, se irmanava no ato”
O desenvolvimento urbano, em vez de promover o convívio e a ligação do ser social à sua história, às suas ânsias de felicidade, às suas memórias profundas, ergue barreiras e afasta o homem do homem.
O isolamento não exercita a imaginação, e a arte, quer dizer, a imaginação posta em exercício pela prática do jogo, é, quase sempre, um fator de libertação, porque o jogo (qualquer jogo), é sempre a representação de outro gesto possível.
A arte é o jogo, realista ou simbólico da esperança, da frustração, da luta, das vitórias e das derrotas do homem. É, por assim dizer, o homem colocado perante o homem, perante si próprio, perante as suas forças e as suas fraquezas.
A tauromaquia tal qual a conhecemos na atualidade, e dizer assim remete-nos para o título da outra sessão da iniciativa, “OS TOIROS HOJE”, não é senão a representação teatral de práticas e atos antigos plasmados e fixados hoje num palco e em ambiente especial em que estão presentes, como dizia Álvaro Guerra, “a arte do domínio e o domínio da arte” duas componentes distintas do toureio, em que, na primeira o artista na sua fragilidade e estética, acaba seduzindo o toiro para o dominar e lhe impor a sua vontade, e na segunda, se eleva ao supremo ato de criador que além da inspiração, domina completamente os códigos e os registos do seu agir, deles se servindo para erguer a obra de arte.
José Brás