O ano de 1932 marca a realização do primeiro Colete Encarnado, mas também a fundação do Grupo de Forcados Amadores de Vila Franca de Xira. Campinos e Forcados: os dois elementos que constituem a singularidade da Festa Brava portuguesa. O actual Cabo do Grupo, Vasco Dotti, revela-nos o segredo para atingir as Bodas de Diamante, numa conversa em que fala da mesma maneira com que o seu Grupo pega toiros: sem medos e com raça!
Qual o segredo para se chegar aos 75 anos?
É preciso dizer que temos 75 anos de fundação, mas não de actividade. O Grupo foi fundado em 1932, na sequência de uma série de actuações bem sucedidas de 10 moços. Passados dois a três anos, o grupo desmantelou-se e só em 1949 retomou a sua actividade. Depois disso aconteceram mais alguns interregnos, embora não tão significativos. Só a partir de 1972, com o Cabo José Carlos Matos, é que o grupo se estruturou, passando a ter uma actividade ininterrupta, dando o salto para o topo, com reputação junto da aficcion nacional. Foi este Cabo que teve a preocupação de pegar nos jovens que tinha, trabalhá-los bem e formar um grupo que ascendesse ao lote dos mais consagrados (como os de Lisboa, Montemor ou Santarém), o que conseguiu com muito trabalho e muita dedicação. Foi a partir daqui que atingiu este patamar, de onde nunca mais saiu. Penso que o segredo está no facto de haver a preocupação de valorizar o grupo, o todo, e não este ou aquele forcado em particular. Eu comparo um grupo de forcados a uma equipa de futebol, em vários aspectos: na gestão, na função do cabo (semelhante à de um treinador que tem de saber gerir os diversos elementos), e no fomento do espírito de grupo.Não quer dizer que não existam outros grupos com bons valores, mas como grupo, como um todo, não funcionam tão bem e não conseguem sobressair ou persistir. Há também o facto de não estarmos muito abertos à entrada de pessoas de outros grupos. Dificultamos muito essa situação, embora seja uma prática que, em tempos, foi muito benéfica para os grupos mais fortes: o ir buscar forcados de grande valor a grupos de menor projecção. Vila Franca não tem muitos casos destes. Prefere criar o seu grupo de formação (os juvenis) e, com eles, ir reforçando o lote de “profissionais”. Actualmente, a maioria de nós foi dos juvenis. Julgamos que quem está no grupo desde cedo, que já conhece bem a casa e sabe quais os objectivos a atingir, mais facilmente está para ficar, defender e dar continuidade ao Grupo.
É fácil, actualmente, conseguir novas pessoas, novos forcados?
Hoje sente-se algum decréscimo na quantidade de jovens que aparecem e, destes, alguns não ficam. Actualmente há uma série de ofertas, o que provoca uma grande dispersão de interesses. Como esta é uma actividade exigente, que requer muito empenho e dedicação, muitas vezes alguns acabam por desistir e virar as suas atenções para outras coisas. Ser forcado não é apenas vestir a jaqueta e pegar um toiro. Ser forcado implica ter uma certa maneira de estar, ter vontade de ultrapassar obstáculos e exercer um conjunto de actos, nomeadamente de entreajuda que, ao longo do tempo, permitem reconhecer que a pessoa tem uma verdadeira atitude de forcado e não apenas de alguém que um dia vestiu uma jaqueta. Nesse aspecto sou muito exigente.
Como é que se faz essa avaliação, relativamente às pessoas novas?
Aquilo que nós fazemos sempre, independentemente de terem 16 ou 22 anos, é encaminhar a pessoa para o grupo juvenil, onde fica durante uma temporada e em que vamos observando o seu comportamento. O nível de exigência quanto às técnicas não é, obviamente, muito grande. Observa-se a presença, a maneira de estar, o colaborar nas tarefas, a maneira como se comporta em praça, o à-vontade nos treinos. É um período em que a minha função é fundamentalmente de observador e em que, consoante as conclusões a que chego, ajo em conformidade. Se me agrada, convido a aparecer junto dos Amadores, a trazer mala no dia das corridas para a eventualidade de serem convidados a fardarem-se. As primeiras vezes que se fardam em praça são determinantes para a sua continuidade no grupo.
Que atributos considera os mais importantes para se ser um bom forcado?
Sem dúvida, que tenha qualidades técnicas e garanta que vale a pena integrá-lo dentro do lote que está fardado para uma corrida. Há depois toda a componente do comportamento em relação ao grupo: a participação, a dedicação, a humildade, a vontade de ajudar. Ainda que tenha alguns pormenores técnicos de menor qualidade que os outros, acho que se deve premiar e reconhecer muito aquele forcado que não falha uma corrida, que está presente todos os dias, que está em todos os treinos, que ajuda. É óbvio que prezo muito as qualidades técnicas, mas se aparece algum que faz tudo bem, mas que se “arma em esperto” ou em melhor que os outros, dificilmente entra neste lote: a vaidade é o pior inimigo do forcado. O grupo, para mim, está sempre acima das qualidades individuais de cada um.
O que distingue o Grupo de Vila Franca, dos outros?
Por causa da nossa política de darmos preferência a quem é ou vive em Vila Franca, conseguimos que a grande maioria dos nossos forcados tenha nascido e more aqui, o que não é muito vulgar nos grupos de Forcados de topo. Há ainda o facto de termos uma casa, uma sede, o que também não é habitual. É um local onde nos podemos reunir, onde convivemos, onde conversamos, onde nos fardamos, onde recebemos os nossos amigos ou outras instituições. Pensamos que ter este espaço próprio é muito importante, o que só se reconhece quando não se teve. No período em que a casa esteve em obras de melhoramento, só o facto de não a termos para nos fardarmos já tornava as coisas diferentes. É aqui que nos encontramos, que discutimos, que analisamos o nosso desempenho nas corridas, o que é muito importante para fortalecer o espírito de grupo. Depois, somos um grupo muito coeso, com uma maneira de estar muito própria, bastante alegre.
Pensa que o facto de haver tantos elementos de Vila Franca, tem a ver com sua aficcion tão própria? Como é que o grupo se integra nela?
Claro que sim, que o termos crescido numa terra com tanta aficcion pela Festa Brava facilitou a existência de um grupo como o nosso. No entanto, temos de admitir que o relacionamento do grupo com os restantes agentes da tauromaquia da terra não foi, até há bem pouco tempo, de muita abertura. Penso que temos evoluído de uma situação de fechamento sobre nós próprios para uma situação de maior relacionamento com os outros. Como em tudo, tem havido vantagens e desvantagens com esta nova atitude, mas julgo que este é o melhor caminho a seguir – o da relação e colaboração com a comunidade em que estamos. Até porque foi graças a ela que conseguimos, por exemplo, melhorar a nossa casa e torná-la mais digna não só para nós, como para os nossos amigos e visitantes. Isto deveu-se ao apoio da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia e às melhores relações que foram estabelecidas com estas entidades. Tal como aconteceu com o apoio do Governo Civil de Lisboa na nossa ida ao México.
Quais são as maiores dificuldades e o que poderia ser feito para facilitar a arte de pegar toiros nas nossas praças?
Em relação às dificuldades, há uma que para nós é, neste momento, inexplicável: o facto de ainda não se terem trocado as bandarilhas tradicionais, por outras mais seguras que já existem no mercado. É uma questão que se tem vindo a adiar, quanto a mim erradamente. Ainda não consegui perceber porquê. Ou melhor, provavelmente é porque, feliz e milagrosamente, os acidentes têm sido poucos, embora vão acontecendo todos os anos. Se calhar está na altura dos forcados tomarem uma posição de força, que passará por dizerem que não actuam enquanto a situação não estiver alterada. Não gosto muito destas posições de força, mas às vezes só assim é que se consegue. Há um novo regulamento criado, salvo o erro, desde 2003 e, até hoje, ainda não está em vigor. É um regulamento que estipula novas condições de segurança ao nível das bandarilhas, das enfermarias e noutros aspectos. Embora a Inspecção Geral das Actividades Culturais, todos os anos, tenha vindo a ser mais exigente ao nível das condições das praças de toiros, a verdade é que esse novo regulamento nunca mais entra em vigor.Depois há também a questão do tipo de toiros escolhidos para as corridas. Quanto a mim há um exagero no peso dos toiros, principalmente quando se trata de praças desmontáveis, que têm muitas deficiências ao nível de arena e de teia. Depois há também a idade dos animais, que o novo regulamento também já dita que, com mais de cinco anos, não podem ir à praça. Ainda se vêem toiros com seis e sete anos a saírem às praças, o que não devia acontecer. Tal como se deveria ter em atenção o tipo de córnea: de acordo com o regulamento, touros com córneas defeituosas não deveriam entrar nas arenas e o facto é que entram. As dificuldades disso são, mais uma vez, acrescidas nas praças desmontáveis, porque aí não entram cabrestos e temos, forçosamente, de pegar de caras. Nas outras já se podem utilizar os cabrestos para as pegas de cernelha e tentar assim resolver a situação. No entanto, verdade seja dita, poucos são os jogos de cabrestos que actualmente se podem considerar bons o que também traz risco para este tipo de pega. As córneas defeituosas acabam por ser um risco quer para as pegas de caras, quer para as de cernelha. Os forcados já têm que se confrontar com uma grande dose de risco e todas estas situações vêm aumentá-la, desnecessária e injustificadamente. Pegar um toiro é uma arte e, com tudo isto, temos de pôr de lado a arte e preocupar-nos apenas com a melhor forma de o agarrar. Deixamos de nos preocupar com a melhor forma de pegar o toiro e passamos a tentar descobrir o melhor truque para o agarrar. Não é bom para nós, não é bom para o público, nem é bom para ninguém.
E em Vila Franca, como vê a Festa?
Se medíssemos a qualidade da aficcion em Vila Franca pelo número de espectadores que vão à praça, estávamos muito mal. Mas sabemos que esta conclusão não corresponde à realidade. Relativamente à praça de Vila Franca, julgo que há inúmeros factores que têm conduzido à falta de público: o nível de vida, o preço dos bilhetes, a qualidade dos espectáculos, até o estacionamento. Mas penso que a ânsia da gestão da praça em conseguir público, muitas vezes deita as coisas a perder, com a oferta de bilhetes aparentemente sem critérios: ninguém gosta de se dirigir à bilheteira para comprar o seu bilhete e saber que tem uma pessoa ao lado com o bilhete oferecido. As pessoas sentem-se prejudicadas, enganadas. Não há pior! Até compreendo a preocupação da gestão em dar ambiente à praça. Aliás, para quem vai actuar não há melhor que uma praça cheia. Mas há que ter cuidado com este tipo de situações, até porque tudo se sabe.
O que deveria ser feito?
Que haja apoios para maior qualidade nos espectáculos; que o preço dos bilhetes, a dividir por todos, seja mais atractivo; que as pessoas não tenham a ideia de que estão a ser injustiçadas ou prejudicadas. Hoje em dia também já se devia estar a pensar no conforto dentro das praças. É terrível ficar três ou quatro horas sentado, sem qualquer comodidade; passada uma hora já não há posição para estar. Também neste factor, Vila Franca de Xira não deveria ficar para trás. O Campo Pequeno já está, Évora e Elvas também, Vila Franca também terá de avançar. Admito até, embora goste muito da nossa Palha Blanco, que talvez fosse tempo de pensar na hipótese da construção de um novo equipamento tipo multiusos, que, na minha opinião, até seria bem construído no Cabo da Lezíria. Tínhamos o problema de estacionamento resolvido e um espaço que daria para fazer qualquer tipo de espectáculos, corridas, concertos, tudo. Há que pensar bem nisto tudo e resolver o problema, se se quiser que Vila Franca continue a manter a reputação da terra mais taurina de Portugal. O Colete Encarnado está aí, espero que venha a ser uma Festa boa, que tenha a grandeza dos seus 75 anos!
Texto: Susana Simões dos Santos
Texto publicado na revista “Colete Encarnado: 1932-2007”, da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira