O Ex Forcado do Grupo de Vila Franca, José Brás, apresenta o seu livro “Lugares de Passagem”


José Brás foi forcado do Grupo de Vila Franca na década de 60.

Fez a Guerra Colonial na Guiné e na ressaca escreveu “Vindimas no Capim” que foi Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.

Comissário de Bordo da TAP entre 72 e 97, foi Presidente do Sindicato do Pessoal de Voo durante oito anos e Instrutor de Voo em aeronaves Ultraleves por mais dez anos.

Volta agora com novo livro que reúne as vivências do autor enquanto andarilho do mundo, em viagens que se entrecruzam por dentro das gentes que habitam as cidades com aeroportos e ainda na memória da Guiné.

Aficionado desde que se conhece, tem colaborado activamente na recolha de assinaturas na defesa da Festa Brava, acção em boa hora iniciada sob a direcção de Moita Flores através da FRENTE DE ACÇÃO PRÓ TAURINA

O texto abaixo é uma passagem do referido livro que terá apresentação no dia 6 de Janeiro às 18h00 na Biblioteca José Saramago em Loures, com a participação do Dr. Victor Ramalho, Presidente do INATEL e escritor, e do Dr. Beja Santos, escritor e crítico literário.

A ARENA É UM MUNDO REDONDO E VAZIO

onde só existem o eu que sou ali

S. Jorge, e o dragão que é o toiro

Nunca!

Nunca estive tão perto de deus, Paula, como naqueles momentos!

Nunca!

Nem em Vila Franca, no meio do rio, perdendo o cabeço de areia na corrente do Tejo, arrastado e sem consciência de um fim próximo, uma certa calma e já sem vontade de resistir, desistindo da vida sem dar por isso.

Nem na guerra da Guiné, cercado e sem munições, amigos esburacados de estilhaços e apagando-se como vela de cera no fim do pavio, choro de homens e gritos de raiva, longe da base e com a picada de volta tapada por metralha forte e feia e fogo de morteiro e basuca. 

Nem ardendo de febre no cume da malária, a cabeça implodindo, a boca rachando de seca, o corpo falecendo no anúncio do desvario.

Nem entre Bolama e Bissau, no batelão Anita carregado de sisal e mancarra, gente negra arrebanhada nas margens do rio Cacine em viagem à capital, meia dúzia de soldados em fim de comissão ou de visita ao hospital, um mar que se pôs altíssimo sem sabermos porquê, serras de água vindas em direcção à proa do barco, o soldado Peniche a convencer-nos que era bom gritar “eh mar! eh mar!” de cada vez que aquele caixote trepava o rolo, toda a gente a gritar “eh mar! eh mar!”, os olhos do negro do leme abertos de dúvida e de susto, o casco a descoberto no pico da onda, caindo inteiro e em grande estrondo na água revolta, eu agarrado ao caixote dos pertences, já sem botas para a circunstância do viranço, a gente negra e branca “eh mar! eh mar!”.

Nem voando sobre Paris, duas horas sem trem de aterragem, passagens a trezentos pés para que os de baixo pudessem inventar uma solução qualquer para aquele trem relutante, a pista tapada de neve carbónica, de carros de fogo, de ambulâncias, de gente correndo sem sentido. Passageiros que me olhavam estranhamente apaziguados com a sorte que pressentiam.

Nem no voo do ultraleve, sobre a mata de sobro, motor gripado, a descer em direcção às ramas das árvores, em direcção ao nada, ao impacto certo na paisagem que subia violentamente contra um Ikarus moderno e depenado.

Nem no aeroporto do Maputo, perguntando a guerrilheiro a marca da arma que trazia na mão, encostado à parede por acusação de inimigo e espião de Marcelo Caetano, julgamento sumário, balas nas câmaras de três armas apontadas ao peito, à farda da TAP, gente arrumada ao longe assistindo ao espectáculo, e eu sozinho comigo e com as minhas palavras de comício, anti-colonialista, anti-imperialista, anti-fascista. E também amigo  e  camarada, muitas vezes repetindo os sons até ver que as armas baixavam.

Repito, Paula. Nunca estive tão perto de deus como naqueles momentos, a dez passos curtos da besta, seiscentos quilos de músculos e ossos, chifrando o ar em ameaça terrível.

Tudo à volta é circular. A praça é um círculo de pesado silêncio. A arena é um mundo redondo e vazio onde só existem o eu que sou ali e o diabo que é o toiro.

O ar e os sentidos rodam em movimento centríptico à volta daquele espaço curto entre mim e o dragão, entre o bem e o mal, nas mãos de deuses e demónios, praticamente interpondo meu corpo, apenas, entre o espectáculo e a morte.

É a teatralidade suprema, Paula, te digo a ti que tanto gostas de teatro! Represento-me a mim mesmo. Sou os três tempos do drama, protagonista, interprete e espectador.

Sou foco central de Stanilavski, teoria épica de Brecht, vivo e morto possível no minuto seguinte num palco real e trágico.

Bem sei que não é assim que vês o ruedo, e que só tens o mariavalismo arrivista, a violência do acto de trazer aos olhos a emoção destravada, como povos antigos na loucura da caçada sacrificial, na bebedeira do sangue e da morte.

Preferes a representação teatral contida no palco da sala, a imitação da morte diária, a espada simulada no ventre do actor, a dor e a esperança jogados na técnica de a jogar para que pareça real o que de facto é, apenas, representação.

Não digo que não, Paula. Não digo que não e eu próprio nem preciso de me dividir para sair da praça de toiros directamente para uma peça de Shakespeare ou Garcia Lorca.

Mas diz-me, Paula, diz-me se souberes dizer-me, dá-me um exemplo de representação teatral, um outro espectáculo, uma outra performance desportiva, ainda que plena, outro jogo em que o jogo sai de si próprio, acto humano, terreno e profano ao mesmo tempo, ainda que em busca de um ideal qualquer, e se transcenda no mais fundo do que o humano pode experimentar, sacralizando o gesto singular e a tragédia colectiva.

A câmara fotográfica no olho da fera fixa uma figura graciosa. O olho da fera fixa no desenho do corpo o desafio e na e sua memória ancestral chispa o apelo do sangue. O ataque brutal, ou fere apenas o vento que ficou da sua passagem por dentro da nossa ansiedade, ou cobra o tributo pleno da vida.

De novo te afirmo, Paula, que nunca me senti tão próximo de deus ou de deuses, o que dá no mesmo.

Deuses, perguntas tu com esse ar de sapiência e razão que eu sei que te desagrada no retrato que de ti gostas de fazer, mas que pões de instinto, sempre que propostas te chegam contra as tuas certezas.

E o medo, Paula, o medo visceral, tão lógico e tão estranho em humano que enfrenta a morte no infinitésimo segundo do embate?

E o acto heróico de sobrepor-se ao medo, de passar-lhe por cima e vencer-se a si e em si próprio?

Não nasci eu em Vila Franca, Paula, apenas na circunstância menor de uns quilómetros na geografia da região.

Muito perto de Sobral de Monte Agraço, foi, e sabemos, saberás, que também a vila de Sobral vive a toirada como se ribatejana de planície e de toiros fosse, e não estremenha de colinas e de vinhas. E de muitos e fortes ventos, também.

Nasci no tempo em que ainda os toiros, enquadrados pelas “chocas” e por campinos em seus cavalos, percorriam o caminho a pé por montes e vales, desde o Ribatejo, onde nasciam, até à praça do Sobral, onde, pelo menos simbolicamente, morriam em Setembro.

Caminhavam de dia por itinerários de pouca gente, dormiam as noites nas matas pequenas que por ali havia, fugiam alguns, inevitavelmente, matando burras e donos de burras.

As histórias que se contavam desses toiros!

Os aldeões falavam do “cochicho”, toiro astuto e feroz, escondido pelos taludes e aparecendo de supetão, baldeando gente à cornada pelas arribas, deixando animais esventrados.

Botei corpo por ali, ouvindo tais histórias e colocando na mesma mitificada prateleira a toiros e toureiros, a campinos e cavalos.

Um mundo onde a vida e a morte se tornavam fábula trágica e heróica.

Um toiro quase deus, ou pelo menos a outra sua metade que dizem ser dele, demónio, diabo, camafeu… pelo poder que tem sobre a morte.

A rebeldia cresceu comigo e acompanhou os trambolhões que dei na vida sem remédio dos puxões de orelha, da lambada e dos riscos.

Em Vila Franca é que cresci a sério nos anos em que lá vivi, trabalhando, estudando, vivendo por dentro a fama de Redol; fazendo remo nesse Tejo também sacralizado por glórias e tragédias, por abundâncias, cheias e naufrágios.

Era quase inevitável, vindo de onde vinha, caí também nos cornos dos toiros.

Fui forcado do Grupo.

E isso é que não me perdoas, Paula, e por isso te jogas toda nessa repulsa que te mina o ânimo, de, uma vez mais, ter acreditado em homem, de ter com ele partilhado sentidos, de o teres desejado e tido.

Não entendeste, não entendes ainda nem sei se irás entender alguma vez, a contradição apenas aparente. A chamada cultura com sua praxis, seus ideais, suas formas, suas acabadas certezas, no convívio com a literatura, as conferências, o teatro, gente “culta” e politizada, e no outro lado, o que apenas vias, senhoritos a macaquearem marqueses antigos em seus cavalinhos, a teima no prolongamento de uns restos de feudalismo absolutista, “os fanfarrões”, os tradicionalistas que teimavam no encosto a um regime conservador e violento, prolongamento possível de um rei absoluto que desejavam, a gratuitidade do gesto e do risco.

A toirada!

Nem te passava pela cabeça a hipótese de outras abordagens, do entendimento sobre o nevoeiro do tempo do homem.

Dizes tu da corrida de toiros, mesmo que à portuguesa, menos sacrificial, menos ritual do que a espanhola, dizes tu que é anacrónica e selvagem.

E nisso pões toda a tua segurança, toda a certeza com que atravessas os lugares e as gentes com quem te cruzas.

E eu digo, Paula, eu digo o que te disse antes e não repito agora, mas reforço, apenas perguntando se sabes das pedras movidas/das marcas de sangue/e ânsias/deixadas nas pedras/para se pôr/assim/um homem erecto/diante da besta. Pergunto se sabes dos deuses / fantasmas / dos dragões inventados/no correr dos tempos/para se pôr /agora/um homem inteiro/diante da morte.

Em processo de crescimento, sabia eu muito pouco sobre a plural, complexa e universal ânsia dos homens pela felicidade.

E gostava, não sabendo porquê, de me pôr em frente do toiro, de chamá-lo, de provocá-lo, de aguentar a investida, escolhendo os tempos e os lugares para o momento do êxtase.

Estava vencida a besta. Fora de mim e dentro de mim, suponho hoje, e também dentro de toda aquela gente que de respiração suspensa, se irmanava no acto.

E isto te digo, Paula, ainda que julgue que serão palavras deitadas ao chão porque não o entendas nem venhas a entender nunca.

José Brás

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