Pela primeira vez nesta atípica temporada, tive oportunidade de presenciar uma corrida de toiros. Um cartel interessante, uma praça importante, um curro de toiros prometedor e principalmente, muita carência de estar rodeado de gente normal e abstraído das notícias apocalípticas que nos entram pelos olhos e ouvidos, dia após dia, nesta triste nova (a)normalidade onde tudo é problema e perdura uma evidente incapacidade, dos senhores que “mandam”, em criar soluções pensadas com caminhos viáveis e que transformam maioritariamente os mínimos detalhes numa espécie de culto do medo, sem disfarçar a latente incapacidade de criar sequer esperança nas pessoas.
O Campo Pequeno reabriu portas para pessoas, máscaras e regras, algumas coerentes e outras nas antípodas da lógica e completamente distantes da mente mais aberta, como a incoerente questão do rodopio de forcados entre a teia e o Páteo de Quadrilhas, a maior aberração de regra que alguma vez foi implementada numa praça de toiros, tipicamente saída de alguma cabeça (im)pensante que deve perceber tanto de corridas de toiros como eu percebo de tricot. O curro de Murteira Grave foi irrepreensível de apresentação e no que toca a comportamento, houve do muito bom até ao menos bom, mas nunca a roçar níveis negativos e o que se presenciou na generalidade foi um curro de grande seriedade tendo o público sentido a transmissão que emanava de cada exemplar lidado nesta noite.
O Grupo de Vila Franca fez a rentrée da temporada 2020 nesta corrida, com tudo o que isso acarreta se atendermos que se passaram 10 meses sem entrar em praça para enfrentar um toiro e deparar de repente com um desafio deste nível. Não foi a noite sonhada ou desejada, mas foi uma noite positiva, com detalhes de grande empenho e valor misturados com alguma falta de “sítio” num ou noutro detalhe, na perspetiva de quem, como é norma neste grupo, busca incessantemente a perfeição.
O 2º toiro da noite, que abriu a temporada para o grupo de Vila Franca, de trapio irrepreensível com idade e seriedade, não correspondeu inteiramente ao mesmo nível no que toca a comportamento: encastado e sério que não abundou de mobilidade, maioritariamente procurou os médios para aguardar os desafios ao qual respondia com fortes investidas, mas de cara algo alta e no decorrer da lide, cada vez mais numa tentativa de proteção ao castigo. O cabo do grupo de Vila Franca, Vasco Pereira, montou o grupo e auto designou-se para enfrentar de caras este oponente de respeito. Esteve toureiro frente ao toiro, sem mácula no cite e no modo como alegrou a investida que foi poderosa, como esperado. O toiro foi extremamente áspero na reunião à qual o Vasco respondeu com uma enorme vontade de lá ficar e quase miraculosamente recuperou a cara ao toiro, depois de andar pelo chão agarrado apenas a um piton, mas na sequência da viagem descomposta e com o toiro sempre a “dar” e a fugir para a esquerda do grupo, perdeu-lhe a cara no ultimo momento pelo que obviamente, não se deu a pega como consumada apesar do grupo ter correspondido de modo exemplar. Na segunda tentativa, voltou a estar correto e uma nova entrada “bruta” para cima, seguida de uma mangada de cima para baixo, despejou o Vasco e o Diogo Duarte que dava primeiras e estava nesse preciso momento a entrar ao toiro. Na terceira tentativa, o grupo já não facilitou, encurtou distâncias e sempre com o Vasco e os ajudas a cumprir, fechou-se a pega sem o brilho ansiado, mas a transbordar vontade e verguenza toureira.
O 4º toiro da noite, outro exemplar de boa estampa pecou um pouco a nível de comportamento pela acentuada querença manifestada pela zona da porta dos cavalos. Apesar disso, deixou-se lidar e respondia sempre com poder e a denotar nobreza nas investidas durante toda a lide. Foi destacado para a pega deste toiro o forcado David Moreira “Canário”. Cite correto, aproveitou bem o movimento do toiro a sair de tábuas para mandar na investida e dentro das suas caraterísticas de forcado da cara, recuou o esperado que não terá sido o suficiente para este toiro que investiu com poder e lhe deu forte nas pernas no momento da reunião, virando o forcado de imediato. Na segunda tentativa, tudo muito idêntico, mas o modo mais eficaz como o “Canário” se dobrou a receber facilitou uma reunião perfeita, apesar de áspera, e que lhe permitiu fechar-se bem na cara do toiro sendo posteriormente secundado de modo exemplar pelo grupo de ajudas que estiveram perfeitos a consumar esta boa pega.
O ultimo toiro da corrida, tal como os restantes, foi um magnífico exemplar ao qual quase nada faltou se falarmos em termos de nobreza, mobilidade, transmissão, trapio e com uma suavidade impressionante para um toiro de 5 anos e com um peso de 590 Kg. Não fora o extraordinário toiro saído em 5º lugar e certamente este seria o meu toiro de eleição para esta corrida. Para encerrar a corrida, o cabo escolheu o Rui Godinho que do alto da sua experiência e qualidade como forcado da cara, arrancou uma grande pega que se podia ter complicado, quando a poucos metros da reunião, o Rui escorregou no piso da arena e soube compor-se o necessário para ter uma reunião praticamente imaculada que o levou em viagem bem fechado grupo dentro, que mais uma vez, respondeu a elevado nível fechando com grande qualidade a ultima atuação desta noite.
Todos queremos acreditar que o mais difícil já lá vai, no que toca a resolver este problema que ataca a nossa vida e, por inerência, o modo de vida de todos nós. Não fomos feitos para este tipo de comportamentos que somos obrigados a adotar nesta altura, o Homem é um ser sociável por excelência e há que dar a volta e resolver quanto antes esta questão para nos podermos voltar a sentir livres, não apenas numa praça de toiros, mas fundamentalmente na nossa vida do dia-a-dia.
Paulo Paulino “Bacalhau”