Escolhido o título fica assim mesmo, embora pudesse bem, naquilo que aqui quero dizer, ter adoptado outro qualquer.
E que quero eu dizer aqui, afinal? Ninguém pergunta mas mesmo assim…respondo.
Na verdade, do que quero falar é da questão shakespeariana do “to be or not to be”, do ser ou não ser.
Pegar toiros de caras, é ou não é tourear?
Tourear pode ou não pode ser uma arte?
Arte grande, quero dizer, sem equívocos nem significados menores da ideia.
Projecção do real num tempo e num espaço determinados; numa forma e num estilo pessoais e em conteúdos do colectivo; representação profana de ânsias, de medos, de esperanças sacralizadas no atravessamento de tempos e de almas, buscando deuses e expurgando demónios; plasmada na interiorização e na interpretação individual de alguns de nós, especiais, porque nos transcendem e representam e pelo que em si, singulares, detêm de nós e nos transmitem por formas elevadas que, recebendo-as, sempre diríamos: “Isto é o que eu gostaria de ser capaz de fazer!”
E meus senhores!
Amigos.
A isto chamo eu arte, venha na palavra junta em grosso maço de papel; venha na cor e nas formas de uma tela; venha na harmonia de uma sinfonia gloriosa; venha na plasticidade da gestão exacta do tempo e do espaço numa arena dividida entre o Dragão e S. Jorge, ainda que montado ou apeado.
É a capacidade de emocionar-se por dentro e, no gesto, de emocionar à sua volta.
A luta entre um animal e um homem não nasceu hoje nem ontem, nem teve, na perdição do tempo, uma origem única.
Profana no acto dos povos antigos de buscar alimento para si e para os seus, na caça; sagrada na necessidade de aplacar a ira dos deuses pelo sacrifício e pela oferta do sangue; profana e sagrada na necessidade que sempre o homem teve de se elevar do comezinho e buscar o desconhecido e o infinito na representação do real.
A Arte terá aparecido no desenvolvimento dessa necessidade perpétua do ser humano, na diferenciação do irracional, suplantando-se e suplantando os companheiros da jornada, ficando, dessa forma, mais próximo dos deuses.
É claro que nem sempre tourear é uma arte, quer dizer, nem sempre se eleva e atinge esse exaltado patamar de emoção, singular primeiro, e colectivo, depois.
Também nem toda a escrita é uma obra de arte, mesmo quando costurada por quem já provou ser artista.
Um simples relatório pode não ser menos digno do que um excelente poema.
Uma canção que nos agrada nem sempre é essa soma de sons que galvaniza e empolga, sem que por isso se considere desprezível.
Um quadro pintado mesmo por pintor consagrado pode não ser essa mistura de formas e de cores que nos emociona, sem que, no entanto, perca um lugar na lista das suas obras.
A arte e o artesanato convivem frequentemente nos mesmos espaços e tempos, e muitas vezes tem maior dignidade uma bela peça de artesão do que uma medíocre criação de artista.
A arte, então, não é senão um jogo de faz de conta, com linguagens próprias, com códigos, tempos e espaços diferentes do real, para, o que é jogo, possa parecer real e emocione como se o fosse.
A literatura saiu do cordel e do oral de feira e sublimou-se no romance e no poema.
A arte rupestre ganhou os salões e as galerias na evolução das formas e das cores.
A tourada deixou os lugares da caçada primitiva e os altares dos deuses, e representa-se hoje centripta e centrifuga, na areia de um redondel; Diferencia-se, aí, do jogo do palco teatral, sempre que na construção da simulação, se volta a pagar o tributo do sangue, na morte do toiro, ainda que simulada, ou na morte real do toureiro.
Tourear, sem qualquer lugar para dúvidas, é ou pode ser uma forma de arte inteira e completa, hoje na sujeição das regras do palco e do mercado do palco, muitas vezes obrigada à eficácia do espectáculo e no prejuízo da obra de arte possível.
E lá voltamos ao mesmo.
A pega de caras é ou não uma forma de arte, pode, ao menos, sê-lo o não?
E é aqui que chegamos ao título escolhido e referido no início como apenas um dos possíveis.
Sendo um espectáculo, a tourada e portanto a pega, para além da sua linguagem e códigos próprios, está condicionada também aos códigos e regras do jogo jogado para o espectador e para as da bilheteira.
Nem sempre esse momento sublime do cite, do temple, do mando e da reunião perfeitos no espaço e no tempo do silêncio emocionado da praça, é possível nessa dicotomia, arte/artesanato.
Por vezes a necessidade de eficácia do espectáculo cobra ao forcado o desejo do belo e impõe-lhe apenas a dádiva da coragem, aí igualando-se também a todos os outros intérpretes da representação.
Tenho p’ra mim que esta alternativa presente em algumas empresas de colocar em praça toiros espanhóis a rondar e a ultrapassar os 700 quilos de carne, muitas vezes carecida de sinais mínimos de bravura, é um inimigo mais da tourada, neste caso da pega, na beleza e emoção que pode transmitir aos espectadores, perante o verdadeiro trapio e a bravura do toiro, e a coragem artística do forcado.
Trapio, peso sério, apresentação que imponha ânsias e emoções, sim, mas bravo e de leitura possível.
Senão, aqueles breves segundos em que toiro, forcado e público se irmanam na postura da emoção controlada, na mistura do instinto e da razão, o homem vertical em frente ao que pode ser a morte no minuto seguinte, a reunião triunfante e a simulação da morte do toiro na vitória do grupo, o desatar do silêncio da praça no aplauso colectivo, pode não passar de uma acto bravo e louco, reduzido na beleza da sorte e aumentado apenas no risco e na possibilidade do massacre, na dor inútil e no cansaço do público que também se desgostará de tal espectáculo.
Portanto, de novo.
Arte ou eficácia?
Arte na pega de caras, não exclui a eficácia e será sempre um espectáculo na memória de quem o viveu, sozinho no ruedo em frente do toiro, ou em colectivo, na bancada irmanados na emoção e em comunicação plena.
Eficácia apenas, mal necessário por vezes para despachar o andamento do espectáculo, não passará nunca de um acto bravo de artesanato.